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O declínio de uma paixão

Por Folha de SP – RAUL JUSTE LORES

Poderá o carro tornar-se o novo cigarro?

RESUMO Nos EUA, o carro perde espaço não apenas como meio de locomoção mas também como objeto de desejo e expressão de um certo modo de vida. Demografia e economia, além da questão ambiental, fazem com que menos jovens tirem carteira de motorista e cidades invistam em sustentabilidade para atrair moradores.

Dois Rolls Royces estão expostos, ao lado de duas Maseratis, no saguão principal do Tysons Galleria. Os carros fazem parte de uma promoção do centro comercial, vizinho do Tysons Corner Center, que, ao ser inaugurado, em 1968, era o maior shopping do mundo.

Os dois centros de compras são o coração do distrito empresarial de Tysons Corner, a 18 km de Washington, cercados por sedes de consultorias como KPMG e Deloitte, do banco Morgan Stanley, do jornal “USA Today” e de companhias de tecnologia. Mais de 100 mil pessoas trabalham ali.

Tysons, porém, está em crise. Apesar dos shoppings e dos arranha-céus, poucos querem morar no distrito, que parece uma versão muito mais rica, embora igualmente desolada, da paulistana Marginal Pinheiros. Calçadas quase inexistentes, prédios separados por estacionamentos intermináveis, avenidas congestionadas e viadutos, muito viadutos. Atacadões e lojas enormes, caixotes fechados à rua, ladeiam as quatro autoestradas que levam ao distrito.

Como para atravessar a Marginal, o pedestre precisa escalar passarelas, passar por entre os carros ou cruzar os estacionamentos sem uma única árvore: é raríssimo encontrar alguém caminhando ali. Só o rio ficou faltando em Tysons: os dois riachos da área foram canalizados e cobertos por asfalto.

O trânsito é o pior da região metropolitana de Washington, que, por sua vez, desbancou Los Angeles como a de pior trânsito em todo o país. Diante desse quadro, empresas discutem a conveniência de manter sedes ali.

Se, na última década, a região metropolitana de Washington ganhou quase 1 milhão de novos moradores, chegando a 5,8 milhões, Tysons passou de 18 mil habitantes em 2000 para 19 mil no ano passado. Nos últimos dez anos, 20 mil empregos se mudaram de lá, especialmente para o centro de Washington, onde há cafés, restaurantes e calçadas largas –que atraem universitários, recém- formados e casais mais velhos cujos filhos já saíram de casa. Gente que vai ao trabalho de bicicleta ou a pé (algo comum a 15% da população da capital americana).

RETROFIT Tysons é vítima do declínio da cultura das quatro rodas no país que criou a linha de montagem, o mercado automobilístico de massas, as highways e que, em filmes e seriados, glamorizou a vida nos subúrbios. Os proprietários de prédios e terrenos dali preparam um bilionário retrofit para reduzir –quem diria– o espaço para carros e tentar tornar a vizinhança amigável aos pedestres.

A reação do mercado –e Tysons é só um exemplo– tem sido adotar a linguagem de urbanistas.

Jaime Lerner, arquiteto e ex-prefeito de Curitiba que priorizou o transporte coletivo na capital paranaense, chamou o carro de “cigarro do futuro” em seminários organizados pelo “New York Times” e pela Folha. “Você poderá continuar a usar, mas as pessoas se irritarão por isso”, afirmou.

Depois de décadas em que o modelo curitibano, que privilegia corredores de ônibus, vem sendo copiado no exterior, é ainda lentamente que ganha adeptos no país, com a adoção de corredores e ciclovias e a discussão de limitar, no Plano Diretor de São Paulo, a oferta de vagas de garagem.

O escritor e empresário australiano Ross Dawson tem opinião parecida à de Lerner. “Um dia as pessoas vão olhar para trás e se perguntar como era aceitável poluir tanto, da mesma forma como hoje pensamos sobre o tempo em que cigarro era aceito em restaurantes, aviões e lugares fechados.”

Em um país onde a carteira de motorista é um RG extraoficial, 20% dos jovens americanos entre 20 e 24 anos de idade não têm hoje habilitação –e o mesmo vale para 40% dos americanos de 18 anos. Em ambos os casos, o número de jovens que não dirigem dobrou entre 1983 e 2013, segundo estudo da Universidade de Michigan.

Desde 2001, o número de quilômetros dirigidos nos EUA vem caindo. Na última década, o número de americanos que vai diariamente ao trabalho de bicicleta aumentou 60%, chegando a 900 mil.

Em várias cidades americanas, mais de 10% das viagens de casa ao trabalho são feitas a pé ou de bicicleta, como em Boston (17%), Washington (15,2%), San Francisco (13,3%), Seattle (12,6%) e Nova York (11%) –na maior cidade americana, 60% das viagens são em transporte público.

Houve investimentos pesados para que isso acontecesse. A gestão do prefeito Michael Bloomberg em Nova York (2002-13) reduziu pistas para carros na Broadway e na Times Square e criou 450 km de ciclovias. Mesmo cidades menos densas, como Denver e Houston, criaram redes de bondes modernos (como os “tram” alemães e suíços, ou metrôs de superfície) na última década.

O uso do transporte coletivo nos EUA em 2013 foi o maior já registrado desde 1956, segundo a Associação Americana de Transporte Público, com 10,7 bilhões de viagens. Foram oito anos de crescimento consecutivo, a partir de 2005. O número de viagens em trens urbanos e bondes aumentou acima de 20% só no ano passado em cidades como Salt Lake City (Utah), Austin (Texas), Filadélfia (Pensilvânia) e New Orleans (Louisiana).

DEMOGRAFIA Diferentemente do que se possa pensar, o cuidado com o ambiente não é a principal motivação do refluxo automobilístico. “Há diversas razões econômicas e demográficas que precedem a preocupação ambiental na mudança da relação dos mais jovens americanos com o carro”, diz Christine Barton, diretora do Boston Consulting Group, empresa de consultoria que coordenou um estudo sobre a crise da paixão americana pelo automóvel.

“Os jovens se casam muito mais tarde e têm menos filhos que nos anos 1950 ou 60. O subúrbio americano, idealizado para a vida sobre quatro rodas, dependia de famílias numerosas, nas quais o pai tinha um emprego para toda a vida”, explica. “Hoje as pessoas mudam de emprego com mais frequência, e os jovens preferem áreas urbanas vibrantes, cercadas de opções de trabalho e entretenimento, com cafés e bares onde possam trabalhar com seu laptop, em vez de viver na lonjura suburbana.”

O olimpo da economia americana também se deslocou, como atesta a decadência de Detroit, berço da indústria mundial do carro, que encolheu de 2 milhões de habitantes nos anos 1970 a 700 mil hoje e cuja prefeitura está oficialmente falida. A General Motors, por várias décadas a maior empresa americana, hoje ocupa o sétimo lugar no ranking da revista “Fortune”. No novo topo, encontram-se empresas de tecnologia, como Google e Apple.

Mesmo na cultura pop, já há registros dessa inversão. A Nova York violenta de “Taxi Driver” e de seriados policiais foi substituída pela de personagens que adoram bater perna, de “Sex and the City” a “Friends”. O subúrbio idealizado de antes, com quintais e carrões na garagem, virou cenário de famílias problemáticas, de “Desperate Housewives” a “A Sete Palmos”.

Mesmo se a questão impacto ambiental não é a central, ela é uma variável na equação.

Aqueles que colocam o aspecto verde no cerne da opção antiautomóvel não se limitam à superfície do debate. Veículos elétricos, por exemplo, não convencem quem chama carro de cigarro do futuro.

“É importante entender que, ainda que sejam veículos com zero emissão de carbono, os carros elétricos poluem”, diz o australiano Dawson. Ele recorda que, em um grande número de países, a geração de energia elétrica depende de combustíveis fósseis. “A poluição continua a acontecer em outra ponta, o que não ocorre com a bicicleta –e muito menos com o transporte coletivo.”

Nos Estados Unidos, 60% das emissões de carbono devidas a meios de transporte vêm dos automóveis –isso significa 20% de toda a emissão gerada no país. Os carros emitem mais carbono que todas as residências e fazendas americanas juntas, segundo a Agência de Proteção Ambiental.

Em abril passado, pela primeira vez em 30 anos, o governo americano criou novas regras para reduzir a emissão de carbono pelos automotores –a adequação custará às montadoras US$ 1.000 por veículo, a partir de 2016.

GADGETS Para o jornalista Greg Lindsay, professor visitante do Centro de Política dos Transportes da Universidade de Nova York, “hoje os celulares tomaram o lugar dos carros como elementos de aventura”. Na opinião de Lindsay, os gadgets são capazes de gerar entusiasmo muito maior do que o suscitado por “um novo modelo de carro qualquer”.

O mercado não tardou em assimilar a tendência: apostar no declínio do carro, de símbolo de status a mero meio de locomoção, tornou-se um negócio lucrativo.

Na década passada, empresas de compartilhamento de veículos, como ZipCar e Car2Go, se popularizaram em grandes cidades americanas. Nesse tipo de serviço, paga-se pelo uso de um veículo por determinado período, ao fim do qual ele é estacionado em um lugar público, para que outro usuário possa tomá-lo. Esses carros compartilhados, que não servem para impressionar o vizinho, são modestos –mais semelhantes ao típico compacto europeu que aos espaçosos utilitários americanos.

De todos os negócios surgidos dessa nova fase, o mais promissor é o aplicativo Uber, avaliado em US$ 18 bilhões após o último aporte de capital de investidores neste mês, o que faz dele a empresa iniciante mais valiosa do mundo.

O aplicativo, que conecta usuários e motoristas cadastrados em seu sistema, foi lançado há quatro anos em San Francisco e, no ano passado, ampliou sua operação para 120 cidades em 38 países (no Brasil, por ora funciona apenas no Rio, segundo o site da start-up).

O carro é chamado pelo aplicativo, e o usuário pode controlar onde o automóvel está circulando e quanto tempo levará para chegar. O pagamento da corrida é debitado em um cartão de crédito também registrado no aplicativo, que permite organizar caronas e grupos.

Para Farhad Manjoo, especialista em tecnologia do “New York Times”, o Uber pode “alterar a maneira como usamos o transporte tanto quanto a Amazon fez com nosso jeito de comprar”. “Seu software é fácil de usar e uma montanha de dados permite localizar a demanda, de forma a reduzir a espera, o tempo de pagamento e, principalmente, a longa busca por estacionamento.” Na opinião do colunista, o Uber pode “realizar o sonho” dos estudiosos que sonham em reduzir o índice de propriedade de automóveis”.

Como o pacote mais acessível do Uber, o UberX, já é 30% mais barato que uma corrida de táxi convencional, o serviço tem se popularizado nas cidades americanas.

Taxistas em diversas cidades europeias fizeram protestos e greves contra o aplicativo, que veem, na prática, como concorrência desleal. Uma vez que o número de licenças para táxis costuma permanecer inalterado por anos em diversas cidades, o Uber se transformou na primeira concorrência de verdade ao táxi tradicional.

“Com menos carros, o custo de vida em áreas urbanas deve ser reduzido, assim como as emissões produzidas por milhões de carros procurando estacionamento. O espaço hoje ocupado por garagens e estacionamentos pode ser realocado para usos mais valorizados, como habitação”, escreveu Manjoo.

Para David King, professor de planejamento urbano na Universidade Columbia, “em muitas cidades e até em subúrbios, vem se tornando mais fácil ter uma vida sem carro ou com uso light do automóvel”, diz. “Em vez de um carro por pessoa, poderemos ter famílias inteiras com um só veículo, usando outros compartilhados.”

POLARIZAÇÃO Mas, em tempos de polarização extrema da política americana, o debate sobre a posse do automóvel se tornou ele também um tema controverso.

“Ciclovias, cidades mais densas, com menos carro e mais calçada, espaço público e transporte coletivo estão em alta no nordeste e noroeste americanos e em quase todas as grandes cidades do país”, diz Karen Seto, professora de geografia e urbanização da Universidade Yale. “São as cidades de sempre, de Seattle, Portland e San Francisco a Washington, Nova York, Boston e Chicago”, diz.

“Mas no Texas, no sul, em boa parte do interior e nas cidades pequenas, o subúrbio, as casinhas iguais, a cidade espalhada sem transporte público, o shopping center e a vida centrada no carro continuam a imperar”, ressalta.

Nas cidades texanas de Arlington e Mansfield, na região metropolitana de Dallas, políticos ligados ao movimento ultraconservador Tea Party fizeram protestos contra a construção de ciclovias, qualificando-as como “uma agenda verde imposta pela ONU” com a intenção de “mudar o estilo de vida tradicional americano”.

Pesquisa divulgada no início do mês pelo instituto Pew comprova essa polarização sobre rodas. Instados a definir como seria “a comunidade ideal”, conservadores responderam “cidade pequena” ou “área rural”. Os democratas responderam “cidades”.

“Subúrbios”, apesar de na prática concentrarem mais habitantes que os centros das grandes cidades e que as zonas rurais juntos, não ficaram em primeiro lugar em nenhum dos dois grupos. Apenas 4% dos conservadores disseram que preferem morar em uma cidade; e somente 11% dos democratas em uma área rural.

O estudo do Pew, que ouviu 10.013 pessoas nos EUA, indica que “americanos que vivem em regiões de maioria republicana ou democrata estão vivendo em mundos diferentes em parte porque eles buscam tipos de comunidades muito diferentes, em termos geográficos e sociais”, segundo os autores da pesquisa.

Os democratas ou que se definiram como “de esquerda” preferem uma comunidade “com casas menores, onde seja possível percorrer a pé os trajetos até lojas, restaurantes e escolas”. Entre os que se disseram conservadores ou republicanos, a maioria preferiu “casas grandes” e escolas, restaurantes e lojas “mais distantes”.

“Diversidade étnica e racial” são fatores importantes para determinar o lugar de habitação, na opinião de 75% dos democratas –só 20% dos conservadores concordaram com tal premissa. A proximidade de atividades culturais também pesa mais para os democratas: 65% deles dizem que estar próximo de museus e teatros é importante na escolha da moradia, contra 23% dos conservadores.

O estudo conclui que a realidade ampara o velho estereótipo segundo o qual conservadores preferem subúrbios, enquanto progressistas querem enclaves urbanos.

Na opinião da professora Karen Seto, de Yale, em termos numéricos, os EUA que dependem do carro ainda levam a dianteira.

“Para a cultura pop, Nova York e Portland podem ser muito mais atraentes, hoje em dia, do que qualquer subúrbio ou cidade pequena, mas viver sem carro ainda é uma aspiração distante para boa parte do país”.

Segundo o US Census Bureau, o IBGE americano, oito entre dez americanos que trabalham ainda vão sozinhos de carro para o emprego. Em números absolutos, esse é o cotidiano de 107 milhões de americanos, enquanto só 13 milhões dividem o trajeto com outra(s) pessoas. Os que trabalham em casa são 6,1 milhões; outros 4 milhões vão ao trabalho a pé; 3,7 milhões, de ônibus; e 2,8 milhões só usam metrô. Por fim, 900 mil adotam a bicicleta.

NOVO CENTRO Se as estatísticas apontam para o fato de que a paixão pelo carro decresce justamente nas áreas mais ricas e culturalmente influentes do país, o mercado imobiliário deve abraçar ainda mais o retrofit ao estilo de Tysons –onde faixas e tapumes promovem, por todo lado, o slogan “Building a new downtown” [construindo um novo centro].

Em 2010, prevendo um êxodo maior de inquilinos e uma queda no valor dos imóveis, um grupo de proprietários dos terrenos e prédios de Tysons lançou um projeto de longo prazo para transformar o distrito em um lugar “com cara de bairro”: que dependa menos de carro e favoreça mais o caminhar.

Os 40 novos prédios já aprovados –pelo menos 15 já em construção– ocuparão terrenos que eram estacionamentos.

Entre a lista de tarefas dos empreiteiros investidores para transformar a área está reduzir os estacionamentos e cobrar por eles (a maioria ainda é gratuita), ampliar calçadas, criar áreas verdes e parques e abrir ciclovias.

Quase todas as medidas vão encolher o espaço para veículos no centro empresarial: há 170 mil vagas para carros, mais que todos os habitantes e funcionários da região juntos, e 3,72 milhões de metros quadrados de estacionamento (2,3 vezes o parque Ibirapuera) para 2,6 milhões de metros quadrados de escritórios.

O metrô de Washington está estendendo uma linha até lá, e quatro estações devem ser abertas em Tysons até o final do ano que vem. Linhas de ônibus que circulam pelo condado de Fairfax, onde fica Tysons, estão ampliando o funcionamento (antes quase inexistente) no horário noturno e finais de semana.

“Quando se pensa em Tysons, pensa-se em enormes congestionamentos. Mas queremos construir aqui a próxima grande cidade americana”, diz Michael Caplin, diretor da Tysons Partnership, organização dos empresários locais. “Nosso sonho é ter uma Tysons onde não seja preciso andar de carro, onde se possa caminhar até o metrô, andar de ônibus, ter lojas, cultura, moradia, tudo junto”.

O objetivo da Tysons Partnership é saltar dos 19 mil moradores atuais para 100 mil em 2050. Três quartos dos prédios em construção estarão a menos de 800 metros das novas estações de metrô. O valor inicial do aluguel de escritórios em Tysons é de US$ 300 por metro quadrado. No centro de Washington, de quase US$ 700.

No mês passado, a associação de empresários lançou uma feirinha de alimentos orgânicos ao ar livre e está atraindo mais “food trucks”, vans de lanches rápidos. Um festival de música e uma corrida de bicicletas –o Tour de Tysons– foram organizados.

Como a vontade de parecer sustentável não inibe excessos, um parque “instantâneo” foi criado. O asfalto foi pintado de verde, e árvores já crescidas foram transplantadas para lá, junto com gramado artificial e bancos com encosto –a poucos minutos a pé de onde os Rolls Royces e as Maseratis parecem símbolos de uma outra era.

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