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A cidade do ciclista

Por Planeta Sustentável

Curitiba tem a fama, algo exagerada, de cidade que antecipa todas as tendências. E não é que a capital paranaense foi a primeira do País a ter um clube de ciclismo? A paisagem é do ciclista e, aos poucos, os (bons) motoristas vão se acostumando a esse novo companheiro de jornada. E se preparando para o próximo: o skate

“A bicicleta é um discurso de humanização das cidades, tornar a vida urbana novamente um deleite, um prazer, um convite ao encontro nos espaços públicos, à vida das ruas”
(Jorge Brand, o Goura Nataraj, yogue e cicloativista)

Os imigrantes alemães, sempre muito gregários, fundaram diversos clubes e associações desde a chegada das primeiras levas em Curitiba. Foi assim que, em 1895, adeptos da bicicleta fundaram na cidade o Radfahrer Club Curityba, do qual se têm apenas referências. Sabe-se que costumavam sair em longas excursões por estradinhas e trilhas que levavam a localidades próximas, distantes 20 ou 30 quilômetros.

Bicicletas Antigas/arquivo Marcelo Eduardo Afornali

Logo depois da fundação do clube de Curitiba, a fazendeira paulista Veridiana da Silva Prado fez construir um velódromo em sua chácara, onde é hoje a Praça Roosevelt. Mas aí é outra história.

De volta a Curitiba. Segundo pesquisa do portal G 1, feita junto a prefeituras de todas as capitais, a cidade, com seus 127 quilômetros de vias cicláveis, perde apenas para o Rio, com 361 quilômetros. A pesquisa perguntou ciclovias e as capitais responderam, mas quem poderá afirmar que se trata, efetivamente de ciclovias, isto é, vias de destinação exclusiva a bicicletas? Em Curitiba, como se sabe, não são apenas ciclovias.

Mas o que interessa é a nova cena nas cidades brasileiras, bem visível nos grandes centros. A bicicleta está deixando de ser aquela agradável opção de lazer dos finais de semana para servir, de fato, como meio de transporte para jovens e adultos.

Aí o inevitável acontece: na guerra pelo espaço, lá vem o pobre ciclista arriscando o couro no mesmo veio por onde escorrem, cada vez mais devagar e cada vez mais agressivamente, ônibus, caminhões, táxis, motos (de boys e de motoboys) e veículos ditos de passeio de todos os preços e tamanhos. Aí incluídas, óbvio, aquelas camionetes que deveriam estar trafegando em estradas de fazenda.

Curitiba é tida como a capital que mais concentra esse tipo de veículo. Estão registradas no Detran, com placa da cidade, 161.996 caminhonetes e camionetas (são sinônimos, mas a terminologia é essa).

Você, que gosta de números, veja só: se Curitiba tem 1,3 milhão de veículos cadastrados, esses tanques se apresentam na proporção de um para cada oito, aproximadamente.

Mas a paisagem, aqui, é do ciclista, e aos poucos os (bons) motoristas vão se acostumando a esse novo companheiro de jornada. Os riscos, porém, são ainda imensos.

O Sistema Integrado de Atendimento ao Trauma em Emergência (Siate), um grupamento do Corpo de Bombeiros – equipado com ambulância e integrado por socorristas e médicos especializados em trauma -, atuante em 19 cidades paranaenses no atendimento a acidentados, tem os seguintes números de 2013 referentes a ciclistas:

Auto x bike – 355
Bike x bike – 13
Caminhão x bike – 20
Moto x bike – 57
Ônibus x bike – 32
Queda da bike – 307 (fechadas, buracos, obstáculos, vacilos, etc.)
Foram 784 acidentes com vítimas, sem contar os que se resolveram no local. Não há números computados de mortes porque o Siate não acompanha a situação do acidentado depois que ele é levado ao hospital.

O ciclista só perde para o pedestre, este sim, o último da “cadeia alimentar” do trânsito. Apenas nas 19 cidades paranaenses onde o Siate atua, foram nada menos que 1.414 atropelamentos com feridos e mortos em 2013.

A pergunta é: o ciclista, que ganhou status de condutor de veículo com o advento do Código de Trânsito Brasileiro, em setembro de 1997, é só vítima (que também é, não resta dúvida) ou, aos poucos, começa a adotar comportamento parecido com o dos motoristas que querem seu escalpo?

Há uma tese: não estaria, o nosso amigo ciclista, assumindo um lado tão autoritário quanto o nosso amigo da caminhonete (nem todos, ressalve-se), que por dirigir uma lataria enorme e pagar mais IPVA acha pode tudo?

Quem nunca viu ciclista furando o sinal, acionando a campainha para o pedestre sair da frente na ciclovia ou na calçada compartilhada, dando voltas sobre a faixa de pedestres quando não consegue avançar o vermelho, trafegando na contra-mão, etc.

Jorge Brand, 35 anos, que adotou o nome em sânscrito Goura Nataraj como professor de yoga e candidato a deputado federal pelo PV (teve 13 mil votos, o que não é pouco, mas não o elegeu, claro), é um dos fundadores da CicloIguaçu, aAssociação de Ciclistas do Alto Iguaçu, que une ativistas de Curitiba e vários municípios vizinhos.

É dele uma serena análise em torno da pergunta acima. Então, o ciclista não é também um pouco vilão nessa história toda?

“Concordo em termos. Acho que não tratamos a bicicleta como meio de transporte nas últimas décadas, não demos a ela este estatuto. Oficialmente sim, na lei, no CTB, mas na prática, não. Até pouco tempo atrás, o site da Polícia Militar do Paraná orientava o ciclista a ir na contra-mão!! O urbanismo brasileiro destas décadas priorizou o carro, tornou-o uma necessidade, um desejo de todos. É isso ou aguentar o descaso com o transporte coletivo, com a bicicleta e com o pedestre.

“Acho que falta noção de convívio no espaço público. Existem idiotas em todos os modais de transporte. Que bom que a bicicleta está sendo reconhecida, ainda de forma um tanto tímida em muitas cidades, mas o exemplo de São Paulo deverá repercutir pro resto do país. É importante trabalharmos o conceito de cidades para pessoas e de ‘traffic calming’ (acalmamento do trânsito!?), colocar a escala humana como referência. Tornar as cidades acessíveis e confortáveis para os pedestres, ciclistas e pessoas com deficiência. A cidade inteira precisa ser segura e ao alcance dos pés de todos”.

A saída, aponta Goura, está na educação, palavra que resume todas as ações com as quais sonham os ciclistas de bom senso. Caso do engenheiro Valmir Singh, 51 anos, que já pedalou em várias cidades brasileiras e até em Buenos Aires, na condição de turista e fotógrafo. Ele critica algumas ações da prefeitura de Curitiba, que implantou ciclovias que mais atrapalham do que ajudam. E sustenta que há bons e maus ciclistas, “assim como há os motociclistas e os motoqueiros”.

Sérgio Brandão, jornalista e triatleta de 58 anos, usa sua bike só para treinar em estrada. Tinha uma, com cadeirinha para a filha, mas preferiu dar a bicicleta para um garoto que a usa para trabalhar. “Levaremos ainda uns 200 anos para termos uma relação pacífica entre motoristas, ciclistas e pedestres”, imagina.

Questão de tempo e paciência, mais políticas públicas eficazes e muita boa vontade por parte dos atores deste processo.

E que todos se preparem, pois chegou à cena um novo personagem. Pelo menos em Curitiba, a cidade que antecipa todas as tendências, a turma do skate já ganhou as ruas

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